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     Ashokh - Narrador e poeta

     G.I.Gurdjieff, "Encontros com Homens Notáveis",
     Editora Pensamento, p. 39-40.

Durante todo o final do século passado e os primeiros anos deste, meu pai havia alcançado grande popularidade como ashokh, isto é, narrador e poeta. Era conhecido sob o nome de Adash e, embora não fosse profissional mas simples amador, sua reputação se estendia até muito longe, entre os habitantes de numerosas regiões da Transcaucásia e da Ásia Menor.
O nome ashokh designa, em toda a Ásia e na península dos Bálcãs, os bardos locais que compõem, recitam ou cantam poemas, canções, lendas, contos populares e historias de toda espécie.
Os homens de antigamente que se consagravam a essa carreira embora fossem, na maioria, "iletrados", não tendo nem freqüentado a escola do povoado em sua infância, nem por isso deixavam de possuir uma memória e uma vivacidade de espírito de tal modo extraordinárias que pareceriam hoje raiar ao prodígio.
Não somente conheciam de cor inúmeros relatos e poemas, às vezes muito longos, e cantavam de memória as mais variadas melodias, mas dedicavam-se ainda, segundo sua "inspiração subjetiva", a improvisos, sobre temas conhecidos, sabendo com rapidez surpreendente, mudar de cadência no momento adequado e encontrar a rima.
Em vão procurar-se-ia, hoje em dia, homens tão bem dotados.
Dizia-se já, na minha infância, que eles estavam se tornando cada vez mais raros.
Foi-me dado, entretanto, conhecer vários deles, entre os mais célebres dessa época e os rostos desses ashokhs ficaram profundamente gravados em minha memória.
Se tive a oportunidade de ouvi-los, devo-o a meu pai, que me levava às vezes com ele aos torneios em que vinham se defrontar, de vez em quando, os poetas-ashokhs de diversos países. Chegavam da Pérsia, Turquia, Cáucaso e até mesmo de certas regiões do Turquestão e, ante uma assistência considerável, engajavam-se em justas de improvisos e de cantos.
Isso geralmente passava-se assim:
Um dos participantes do torneio, cujo nome tinha sido sorteado, propunha a seu adversário, improvisando uma melodia, uma pergunta sobre um assunto religioso ou filosófico ou, ainda, sobre o sentido e a origem de alguma lenda, tradição ou crença conhecida. O outro respondia improvisando, por sua vez, uma melodia e essa melodia subjetiva devia sempre estar em harmonia com a que a precedia, tanto em sua tonalidade como em relação ao que a verdadeira ciência musical denomina sua seqüência ansalpaniana de ecos.
Tudo era cantado em versos, na língua turco-tártara, então adotada como língua comum pela maioria dos povos dessas regiões, que falavam dialetos diferentes.
Esses torneios prolongavam-se por semanas inteiras, às vezes até por meses. E terminavam com uma distribuição de recompensas concedidas, por assentimentos unânime, aos cantos que mais se haviam destacado. Esses presentes consistiam mais comumente em gado, tapetes ou outros objetos de valor, oferecidos pela assistência.
Fui testemunha, em minha infância, de três dessas grandes competições. A primeira realizou-se na Turquia, na cidade de Van, a segunda no Azerbaijão, na cidade de Karabagh e a terceira, no pequeno burgo de Subatan, no distrito de Kars.
Em Alexandrópolis e em Kars, as duas cidades onde viveu minha família, meu pai era muito freqüentemente convidado a saraus, onde vinham ouvi-lo recitar ou cantar.
Durante esses saraus, contava ele, a pedido da assistência, uma ou outra dessas inúmeras lendas, a não ser que cantasse algum poema dialogado no qual interpretava alternadamente os papéis.
A noite inteira era, às vezes, curta demais para terminar o relato, de modo que reuniam-se novamente no dia seguinte.
Na véspera dos domingos e feriados, como nós, crianças, tínhamos o direito de não nos levantar cedo no dia seguinte, meu pai costumava contar-nos uma história, quer sobre os grandes povos da antigüidade, quer sobre homens notáveis, quer sobre Deus, sobre a natureza ou sobre toda espécie de maravilhas misteriosas. E terminava sempre por algum conto das Mil e Uma Noites, dos quais sabia um número tão grande que seguramente teria podido contar-no-las por mil e uma noites.