A Lenda de Gilgamesh - Herói da
antiga Babilônia
G.I.Gurdjieff, "Encontros com Homens
Notáveis",
Editora Pensamento, p. 41-43.
Entre as fortes impressões que me deixaram as
histórias de meu pai, que imprimiram sua marca sobre toda a
minha vida, há uma que me serviu mais tarde e, talvez, não
menos que cinco vezes, de "fator espiritualizante",
abrindo-me uma compreensão do incompreensível.
Essa forte impressão, que devia mais tarde servir-me de
fator espiritualizante, cristalizou-se em mim, num dia em
que meu pai havia cantado e contado para nós a Lenda
do dilúvio antes do dilúvio, quando eclodiu uma
discussão a esse respeito entre ele e um de seus amigos.
Isso se passava na época em que a imperiosa pressão das
circunstâncias havia constrangido meu pai a adotar o ofício
de carpinteiro.
O amigo em questão vinha freqüentemente visitá-lo em sua
oficina e os dois passavam, às vezes, a noite inteira
tentando decifrar o sentido das velhas lendas e dos
provérbios.
Esse amigo de meu pai não era outro senão o arcipreste da
catedral militar de Kars, o Padre Borsh, o homem que, dentro
em breve, se tornaria meu primeiro mestre, o criador e autor
de minha individualidade atual ou, dito de outro modo, a
terceira face de meu Deu interior.
Na noite dessa discussão, encontrava-me na oficina, bem como
meu tio, que tinha vindo de uma aldeia vizinha, onde possuía
grandes hortas e vinhedos.
Estávamos sentados tranqüilamente num canto, meu tio e eu,
sobre macias aparas, escutando meu pai que cantava, nessa
noite, a lenda do herói babilônico Gilgamesh e nos explicava
sua significação.
A discussão surgiu, quando terminou o canto XXI dessa lenda,
em que certo Ut-Napishtin conta a Gilgamesh a destruição,
pelas águas, da terra de Shurupak.
Depois de ter feito uma pausa para encher seu cachimbo, meu
pai disse que essa lenda remontava, segundo ele, aos
sumérios, povo mais antigo ainda que os babilônios, e que
ela estava, certamente, na origem do relato do dilúvio da
Bíblia dos hebreus e na origem da concepção cristã do mundo,
só os nomes haviam sido trocados, bem como certos detalhes
em lugares diversos.
O Padre Borsh fez, imediatamente, objeções, apoiando-se com
numerosos dados contrários e a discussão não tardou a se
acalorar, a ponto de se esquecerem de me mandar para cama,
como sempre faziam nesses casos.
Estávamos de tal modo interessados por essa controvérsia,
meu tio e eu, que ficamos imóveis sobre nossas aparas até a
hora em que, ao raiar da aurora, meu pai e seu amigo puseram
fim a seu debate e se separaram.
Esse canto XXI foi tantas vezes repetido nessa noite, que
ficou gravado em minha memória por toda a vida. Dizia-se
ali:
Revelar-te-ei, Gilgamesh,
Um triste mistério dos Deuses;
Como se reuniram um dia
Para decidir submergir a terra de Shurupak.
Eya dos olhos claros, sem nada dizer a Anu, seu pai,
Nem ao Senhor, o grande Enlil,
Nem àquele que esparge a felicidade, Nemuru,
Nem mesmo ao príncipe do mundo subterrâneo, Enua,
Chamou para perto de si seu filho Ubaretut
E disse-lhe: "Filho, constrói um barco com tuas mãos,
Toma contigo teus próximos,
E os quadrúpedes e as aves de tua escolha,
Pois os Deuses decidiram irrevogavelmente
Submergir a terra de Shurupak."
Essa discussão sobre tal tema, entre esses
dois homens, que haviam vivido de maneira relativamente
normal até uma idade avançada, produziu, graças aos dados
depositados em mim durante minha infância pelas fortes
impressões que dela recebi, resultados benéficos para a
formação de minha individualidade. Disto só tomei
consciência, aliás, muito recentemente, logo antes da Guerra
mundial; mas, desde então, esses resultados nunca cessaram
de ser para mim o fator espiritualizante de que falei.
O choque inicial que, através de minhas associações mentais
e emocionais, desencadeou essa tomada de consciência foi
este simples fato:
Um dia, li numa revista um artigo onde se dizia que haviam
sido descobertas, nas ruínas de Babilônia, certas tabuinhas
com inscrições que datavam de pelo menos quatro mil anos,
segundo os sábios. A revista reproduzia as próprias
inscrições e dava delas uma tradução - era a lenda do herói
Gilgamesh.
Quando compreendi que se tratava dessa mesma lenda, que
tantas vezes ouvira ser contada por meu pai em minha
infância e, principalmente, quando encontrei nesse texto,
sob forma quase idêntica à do relato de meu pai, esse famoso
XXI.o canto, fui tomado de forte "pasmo interior", como se,
daí por diante, todo o meu destino fosse depender disto. Por
outro lado, estava tocado pelo fato, ainda inexplicável para
mim, de que essa lenda pudesse ter sido transmitida durante
milhares de anos, por gerações de ashokhs, sem que a forma
tivesse sido alterada.
Depois desse evento, quando os benéficos resultados das
impressões depositadas em mim desde a minha infância, pelos
relatos de meu pai, se me foram finalmente tornados
evidentes — resultados que cristalizaram em meu ser esse
fator espiritualizante, capaz de abrir-me à compreensão do
que parece, em geral, incompreensível - lamentei muito
freqüentemente haver esperado tanto para dar a essas antigas
lendas a enorme importância que verdadeiramente possuem,
como me dou conta hoje em dia.
|
|