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       Kastousilia - Processo original de autoaperfeiçoamento

       G.I.Gurdjieff, "Encontros com Homens Notáveis",
       Editora Pensamento,  p. 44-45.

 

E agora, como no curso lógico da exposição deste capítulo, consagrado à memória de meu pai, fui levado a falar de seu amigo, meu primeiro mestre, o Padre Borsh, parece-me indispensável descrever aqui um processo imaginado por esses dois homens, chegados ao limiar da velhice após uma existência normal, que tinham tomado a si a obrigação de preparar, para uma vida responsável, o menino inconsciente que eu era e que mereceram, por sua atitude honesta e imparcial para comigo, representar hoje em dia para minha essência, depois de tantos anos, duas das faces da divindade de meu Deus interior. Esse processo, quando mais tarde fui capaz de compreendê-lo, pareceu-me um meio muito original de desenvolvimento mental e de aperfeiçoamento de si.
Chamavam-no kastusilia, termo que provem da antiga língua assíria, se não me engano, e que meu pai tinha colhido, sem dúvida, em alguma lenda.
Eis em que consistia:
Um dos dois propunha, de repente, ao outro, uma pergunta à primeira vista de todo descabida. O outro, sem se apressar, dava, com a maior calma e a maior seriedade, uma resposta lógica e plausível.
Por exemplo, uma noite em que eu estava na oficina, meu futuro mestre entrou de improviso e, sem perder tempo em sentar-se, perguntou a meu pai: Onde está Deus neste momento?
Meu pai respondeu-lhe com gravidade:
 Deus está neste momento em Sarykamich.
Sarykamich é uma região arborizada, na fronteira da antiga Rússia com a Turquia, famosa em toda a Transcaucásia e Ásia Menor, pela altura extraordinária dos pinheiros.
A seguir, o velho padre perguntou:
 E que faz Deus ali?
Meu pai respondeu que Deus construía ali escadas duplas, no topo das quais fixava a felicidade a fim de que, sobre essas escadas, indivíduos e nações inteiras pudessem subir e descer.
Perguntas e respostas seguiam-se assim, num tom comedido e tranqüilo, como se um deles houvesse perguntado: "Qual é a cotação da batata hoje?" e o outro houvesse respondido: "A colheita foi muito má este ano." Só muito mais tarde devia compreender a riqueza de pensamento que se ocultava sob tais diálogos.
Tinham muito freqüentes conversas desse gênero, de tal modo que um estranho os teria tomado, sem dúvida alguma, por velhos caducos ou pobres loucos em liberdade, cujo lugar normal deveria ser no hospício.
Muitas perguntas e respostas, que me pareciam então destituídas de sentido, tomaram a meus olhos, mais tarde, profunda significação, quando problemas da mesma ordem se me propuseram, e foi somente então que compreendi a enorme importância que tinham para os dois anciãos.

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