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Verdadeiro Poeta - O impulso de felicidade

G.I.Gurdjieff, "Encontros com Homens Notáveis",
Editora Pensamento, p. 46-48.

 

      Meu pai, que me amava muito particularmente por ser eu seu primogênito, exerceu sobre mim grande influência.
      No fundo de mim mesmo, considerava-o mais como meu irmão mais velho do que como pai. As freqüentes conversas que tinha comigo, bem como seus relatos extraordinários, favoreceram em minha essência a eclosão de imagens poéticas e a aspiração a um ideal elevado.
      Meu pai era de origem grega. Seus ancestrais tinham vivido em Bizâncio e se haviam exilado, pouco depois da tomada de Constantinopla pelos turcos, para fugir às perseguições destes últimos.
      Tinham, inicialmente, emigrado para o coração da Turquia, pois, por certas razões - notadamente a busca de condições de clima e de pastagens mais favoráveis para os rebanhos que constituíam uma parte importante de suas imensas riquezas - tinham vindo estabelecer-se nas margens orientais do Mar Negro, perto da cidade conhecida hoje em dia por Gumuchkhane. Mais tarde ainda, pouco antes da última grande guerra russo-turca, a retomada das perseguições turcas forçou minha família a passar para a Geórgia.
      Aí, meu pai se separou de seus irmãos, para alcançar a Armênia, onde se fixou na cidade de Alexandrópolis, que acabava de perder seu nome turco de Gumri.
      Quando da divisão da herança, meu pai recebeu uma parte que representava, na época, uma riqueza considerável e que incluía, entre outras coisas, numerosos rebanhos.
      Um ou dois anos mais tarde, ficaria completamente arruinado em decorrência de uma dessas calamidades que não dependem em nada dos homens - e isso nas seguintes circunstâncias:
      Pouco tempo depois de sua instalação na Armênia - com toda a sua família, seus pastores e seus rebanhos - meu pai, sendo o mais rico proprietário pecuarista, fora procurado pelas famílias pobres da região, como era costume, para lhe confiarem a guarda de seus animais de chifre e outros animais domésticos. Em troca, ele deveria dar-lhes, na estação, certa quantidade de manteiga e de queijo.
      Ora, no momento preciso em que seus rebanhos aumentavam assim de vários milhares de cabeças, uma epidemia de peste oriunda da Ásia, espalhou-se por toda a Transcaucásia. A epidemia foi tão violenta que, no espaço de menos de dois meses, quase todos os animais tombaram; só alguns sobreviveram e, ainda assim, não lhes restava, por assim dizer, senão a pele e os ossos.
      Como meu pai, ao aceitar esse gado, havia igualmente assumido, segundo o costume, segurá-lo contra todos os riscos - mesmo o rapto pelos lobos, que se produzia com bastante freqüência, - não só perdeu, nessa catástrofe, seus próprios rebanhos, mas foi obrigado a vender quase todos os seus outros bens para indenizar os proprietários dos animais perdidos.
      E meu pai, de homem rico que era, ficou pobre do dia para a noite.
      Nossa família compunha-se, então, de apenas seis pessoas: meu pai, minha mãe, minha avó, que havia querido terminar os dias perto de seu filho caçula, e três filhos - eu, meu irmão e minha irmã. Era eu o mais velho. Devia ter, na época, cerca de sete anos.
      Privado a partir dai de qualquer fortuna, viu-se meu pai na obrigação de empreender novo negócio, pois a manutenção de uma família como a nossa, que até então tinha sempre sido muito amimada, custava muito caro. Reuniu, pois, o que lhe restava de uma casa, no o padrão de vida tinha sido dos mais altos e começou abrindo um entreposto de madeira, ao qual anexou, como era costume ali, uma oficina de marcenaria para a fabricação de artigos de toda espécie.
      Mas, desde o primeiro ano, foi um fracasso para meu pai, que nunca havia comerciado em sua vida e que carecia totalmente de experiência.
      Teve, então, que liquidar o entreposto e limitar-se à sua oficina, especializando-se em pequenos objetos de madeira.
      Quatro anos decorreram desde o primeiro desastre que meu pai havia sofrido. Morávamos ainda em Alexandrópolis.
      Ora, nesse meio tempo, a famosa cidadela de Kars havia caído nas mios dos s, que empreendiam ativamente a reconstrução da cidade.
      Abriam-se ali, assim, perspectivas interessantes e meu tio, que já se havia instalado aí, não custou muito a convencer meu pai a transferir sua oficina para lá. Ele partiu sozinho, inicialmente; voltou, depois, para levar toda a família a com ele.
      Esta havia ainda aumentado, nos últimos anos, de "três aparelhos cósmicos para a transformação do alimento", sob os traços de minhas três irmãs caçulas, então verdadeiramente encantadoras.
      Desde nossa instalação em Kars, meu pai me havia enviado para a escola grega. Mas, dentro em breve, conseguiu fazer com que eu entrasse no colégio russo.
      Como eu era bem dotado, era-me necessário pouco tempo para preparar minhas lições e podia consagrar o resto do dia a ajudar meu pai em sua oficina. Muito depressa comecei a ter minha própria clientela, recrutada, a princípio, entre meus camaradas de classe, para quem fabricava objetos diversos, tais como fuzis, porta-canetas, etc. Pouco a pouco, passei para um trabalho mais sério: ia fazer toda espécie de pequenas reparações a domicílio.
      Embora fosse apenas um menino, lembro-me da vida de nossa família até os últimos detalhes. E, sobre esse pano de fundo, sobressai toda a grandeza da serenidade e do desapego que meu pai conservava, em todas as suas manifestações, diante das desgraças que ocorriam.
      Posso dizê-lo, agora, com toda certeza: a despeito da luta encarniçada que travava contra os infortúnios, que se abatiam sobre ele como de uma cornucópia de abundância, nem por isso deixou de conservar, em todas as circunstâncias difíceis de sua vida, a alma de um verdadeiro poeta.
      Eis, na minha opinião, a razão pela qual reinava em nossa família, mesmo quando nos faltava tudo, uma extraordinária atmosfera de concórdia, de amor e de desejo de nos entreajudar.
      Graças à sua faculdade inata de haurir uma inspiração nos mínimos detalhes da vida, era para todos nós, mesmo nos momentos mais angustiantes de nossa existência comum, uma fonte de coragem e, ao comunicar-nos sua livre despreocupação, suscitava em nós o impulso de felicidade ao qual já aludi.